Foko Urbano: As criancas a beira do caminho: o que a igreja brasileira tem a ver com isso?


As crianças à beira do caminho: o que a
igreja brasileira tem a ver com isso?

Ariovaldo Ramos
O artigo a seguir é uma adaptação da palavra do pr. Ariovaldo Ramos dirigida a 29 pessoas reunidas para o I Encontro de Educadores Sociais Cristãos, organizado por Mãos Dadas em julho de 2008. Decidimos reproduzi-lo nesta edição porque suas palavras expressam bem a convicção dos que participam da Rede Mãos Dadas e fortalecem o nosso compromisso com Deus e com as crianças brasileiras que estão à beira do caminho.


A pergunta errada

É muito conhecida a história do bom samaritano, contada por Jesus e registrada pelo evangelista Lucas (10. 25-37). Jesus a contou para responder a pergunta “Quem é o meu próximo?”. A primeira coisa que Jesus fez ao contar a parábola foi corrigir a pergunta. Ele perguntou ao mestre da lei: “Qual destes três lhe parece ter sido o próximo do homem que caiu na mão dos salteadores?”. A resposta foi: “O que usou de misericórdia para com ele.” E Jesus concluiu: “Vai, e procede tu de igual modo”. O samaritano viu alguém que precisava dele e agiu em função daquela pessoa. Devo ser próximo daquele que eu vir que precisa de mim.


Mas a conversa com o mestre da lei tinha começado porque ele queria saber o que fazer para ter a vida eterna. Jesus lhe pediu para que resumisse a lei de Moisés. O mestre da lei acertou em cheio: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento e amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Jesus complementou com o lógico: “Ótimo, você já sabe, então vá e faça isso”. E o mestre da lei fez a pergunta errada, “Quem é o meu próximo?”, revelando que não sabia o que parecia ser o mais óbvio: a relação com o próximo. Ele sabia o que era amar Deus de toda a alma, de toda força, de todo coração, de todo entendimento, mas não sabia quem era o próximo.


Isso é um absurdo. Nenhum de nós sabe qual o limite das nossas forças, nem a dimensão da nossa alma, do nosso coração ou do nosso entendimento. O mestre da lei achava que sabia, e que o seu problema estava na segunda parte do mandamento, saber a quem deveria amar. Essa é uma confissão terrível e assustadora. Ele estava dizendo: “Eu sei o que fazer com Deus, mas não sei o que fazer com as pessoas”. E isso parece ser uma absoluta contradição. Como é possível saber tudo sobre o Criador e com isso se afastar das suas criaturas?


A igreja do mestre da lei
A situação do mestre da lei retrata bem o estado da igreja brasileira. Temos pensadores e teólogos de todos os tipos, temos ótimas escolas de teologia, mas continuamos sendo uma igreja que sabe “tudo” sobre Deus, mas não sabe a quem
amar.


A melhor coisa que a igreja pode fazer onde quer que esteja inserida para pregar o evangelho é demonstrar o amor de Deus, marca básica do seu reino. Por que temos tanta dificuldade em fazer o pastor entender isso? É muito claro, é só olhar para a criança recém-nascida. Ela sabe que a mãe a ama por causa de tudo que a mãe faz por ela. Não é um sentimento abstrato, está no toque das mãos, no colo, no alimento, no cuidado, na voz. Algo muito prático. Mas nós, pastores e suas igrejas, não conseguimos entender isso, porque o evangelho que nós temos no Brasil é o evangelho do mestre da lei: um evangelho capaz de dizer “Eu sei o que é amar a Deus, mas não sei quem é o meu próximo”.


Nossa igreja é marcadamente teórica. A maior prova disso é que ela gira em torno do púlpito. O pastor brasileiro é contratado pelo que é capaz de fazer durante uma hora e meia, uma vez por semana.


Jesus nos ensina que devemos ser próximos daquele que precisa da nossa ajuda. Ver essa pessoa é o primeiro passo. E essa visão é deflagrada pela compaixão, que é a grande marca do samaritano. Jesus fez questão de frisar que outros dois homens — um levita e um sacerdote — também tinham visto o que estava ferido. Mas só o samaritano se compadeceu. Não é uma questão de ver com os olhos, mas sim com o coração.


A compaixão é necessariamente fruto da identificação. Você se compadece de alguém com quem se identifica. Ao vê-lo, se imagina no lugar dele e diz “poderia ter sido comigo”. Se o samaritano tivesse passado antes do moço, ele provavelmente teria sido o assaltado. Seria ele o homem à beira da estrada. A compaixão que não se coloca no lugar do outro é egoísta, porque é uma compaixão da filantropia, não da comunhão. Ela faz com que eu olhe o outro como se ele fosse um ser inferior a quem eu posso dispensar um pouco do meu tempo, dos meus recursos, das minhas possibilidades — afinal de contas, não me custa nada.


Jesus fez questão de afirmar que estava falando de um samaritano. Seus ouvintes discriminavam os samaritanos considerando-os uma raça inferior e herege, um povo que não sabia nada sobre Deus e se metia a falar dele.


Na parábola havia três judeus. Um deles foi assaltado e abandonado à beira do caminho. Dois outros judeus passaram ao largo. Todos iguais ao mestre da lei, gente que sabe o que é amar Deus. Então passou o samaritano que, ao contrário do mestre da lei, não sabia nada sobre Deus, mas sabia a quem amar.


Você percebe a ironia na fala de Jesus? É como se ele dissesse: “É o samaritano, lembra dele? Aquele sujeito que não sabe nada sobre Deus, aquele sujeito que você despreza. Mas ele viu, e se compadeceu”. Jesus chama a atenção do mestre da lei para o racismo deste. A denúncia se estende aos outros ouvintes também. “É verdade, nem você nem a sua cultura sabem a quem se deve amar, porque vocês segregam, marginalizam, o samaritano. Vocês não entenderam qual foi o chamado de Abraão. Um povo que tem a vocação de ser uma benção para todas as famílias da terra não tem a prerrogativa da segregação”. Segregação por parte da igreja, povo de Deus, contradiz a sua missão, a sua razão de existir, a sua razão de ser.


Além de denunciar a ética do mestre da lei e de seus contemporâneos, Jesus mostra o que deve ser feito: você tem de sair do seu conforto e ir para o lugar de desconforto do outro. Identificar-se com ele e fazer tudo o que for possível para tirá-lo dali e trazê-lo para o seu lugar de conforto. Todos esses movimentos exigirão o sacrifício de se dispor e disponibilizar tudo o que é seu, porque aquele que você viu que precisa de você, se torna imediatamente sua prioridade. Você ajuda o outro no seu estado de desconforto, de modo a dar-lhe condições mínimas de reação, traz a pessoa para o seu estado de conforto, e leva-o a um lugar onde ele possa ser plenamente recuperado. E é exatamente esse o movimento que o samaritano faz. O pastor presbiteriano Dídimo de Freitas chama esse movimento de “teologia da ação social”.


Uma das razões porque nós temos tantas denominações evangélicas é porque nós sabemos demais e nos dividimos por conta de detalhes. Elaboramos verdadeiros tratados sobre Deus, mas não sabemos a quem devemos amar.


A maior denúncia de Jesus na parábola do bom samaritano é: “Será mesmo que você sabe de Deus se você não sabe a quem deve amar?” A grande questão que Jesus levanta para o mestre da lei é: “Além de ter feito a pergunta errada, tem mais um detalhe que eu preciso lhe dizer: será que você sabe mesmo sobre Deus? Porque quem sabe de Deus sabe a quem deve amar, pois Deus é amor”.


Da mesma forma, algo na vida da igreja brasileira está profundamente errado: uma igreja que segue a Deus, que diz conhecer a Deus e saber o que é amar a Deus, tem de saber a quem se deve amar, tem de falar menos e agir mais. Este é o grande desafio de se fazer uma missão integral no Brasil. É difícil perceber que não há outra maneira de falar de um Deus que é amor se não for por meio de atos de amor que dão conteúdo a qualquer palavra que a gente queira dizer. Quem segue um Deus assim não pode ter palavras vazias.


A criança é quem está à beira do caminho
Palavras vazias não cabem em lugar nenhum, muito menos em uma realidade como a do Brasil. A pessoa, o ser humano à beira do caminho no Brasil é, por excelência, a criança. É o pobre de modo geral, mas dos pobres a criança sofre mais com a pobreza e está em maior número. O Estado não tem uma política que contemple, por exemplo, as necessidades de nossas criancinhas até 6 anos — 11,5 milhões delas (56% nesta faixa etária) vivem em famílias cuja renda mensal está abaixo de meio salário mínimo per capita por mês.* Elas não têm seus direitos humanos básicos garantidos, vivem em situações indignas e deploráveis.


O Brasil convive com o crime organizado, que tem na criança seu alvo preferencial tanto na prestação de serviço quanto no consumo. Na prestação de serviço, porque o tráfico se utiliza da grande contradição que existe no Brasil, onde em muitos casos a lei apropriada existe, mas não é aplicada. Por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente é excelente, mas até hoje, 18 anos depois de criado, ainda não foi implantado. O narcotráfico sabe que a criança é inimputável, não pode ser responsabilizada. Sendo assim, eles aliciam a criança para fazer o serviço sujo. E as pessoas que querem corrigir esse estado de coisas no Brasil decidem, num rasgo de “inteligência” profunda, punir a criança!


Em vez de fazermos, como sociedade, uma devassa no judiciário, na polícia e nos institutos públicos, que estão corrompidos e corroídos até a medula, decidimos que a solução é punir a criança. Isso para resolver um problema que, sem dúvida alguma, faz da criança a maior vítima.


Quem coloca a criança à margem do caminho é o próprio Estado brasileiro. Primeiro, pela sua ausência, pois o Estado não está presente nas comunidades, nem na área de saúde, nem na de educação, e nem na prevenção ao crime. Ele chega depois, com a força da coerção, para pegar o “pé de chinelo” e fazer bonito nos jornais.


A imprensa, por sua vez, dá voz às forças dominantes no Brasil que se integram de forma articulada para camuflar o problema, para maquiar o país. É verdade que nós temos uma economia potente, que nós somos uma das vinte nações emergentes e somos uma das mais próximas do primeiro mundo. Mas toda essa vitalidade econômica continua nas mãos de poucos, pois os meios de produção pertencem a poucos.


Somos a única nação moderna do mundo que não passou por uma reforma agrária. Essa situação no campo propicia o trabalho escravo, cuja maior vítima é novamente a criança. O Brasil tem uma pessoa agonizando à beira do caminho. É uma criança ou um adolescente, que sofre pelo descaso do Estado, pela falta de políticas públicas, pelo modelo econômico, um modelo concentrador de riquezas e que eleva o lucro à condição de deus.


O lucro é um grande inimigo da criança porque ninguém custa menos ao ser explorado do que a criança. É simples, é a lógica do sistema. E é contra isso tudo que lutamos.


Se a igreja continuar com o evangelho do mestre da lei, nós não vamos fazer diferença alguma em nosso país, porque é um evangelho que não sabe a quem se deve amar. Um evangelho que não se identifica, que não reconhece que tem alguém à beira do caminho, e que passa ao largo de crianças estiradas, crianças que representam o futuro desse país. Uma nação que não cuida bem das suas crianças é uma nação comprometida, em crise.


Qual é o nosso papel? É não desistir da igreja. A parábola do samaritano é mais atual do que a gente gostaria que fosse, e ela é destinada à igreja brasileira e para a situação desse país. Nosso papel, na igreja, é pegar nossos pastores pelo colarinho e dizer: “Venha aqui ler a parábola do samaritano de novo. Vamos ler outra vez, parece que nossa igreja não a entendeu ainda. Vamos ler até que eu, você e os que estão conosco saiamos dessa posição de conforto”. Essa missão nós não podemos abandonar.


Ariovaldo Ramos é pastor evangélico, presidente do ministério JEAME e mora em São Paulo, SP.

Fonte: Mãos Dadas

Nota
* IBGE/Pnad 2006 – Tabulação Especial de Eqüidade.

Foko Urbano: Jesus Cristo e a resposta. Mas qual e a pergunta?


Jesus Cristo é a resposta. Mas qual é a pergunta?

Derval Dasilio Todos viram a exposição diária, meses a fio, pela televisão, do casal acusado de jogar a filha pela janela, enquanto se omitia a estatística macabra da violência doméstica contra a criança no Brasil. Segundo informações de órgãos atuantes em defesa da criança, como forma de catarse da sociedade bem-posta indignada a seu jeito, evidentemente hipócrita, juristas, juízes, autoridades do judiciário, legistas, criminologistas, antropólogos passam sua sapiência jurídica, ou científica, para “saciar” a fome de vingança social. Não falam o essencial: há quinhentos mil casos de violência contra a criança por ano. Estima-se. Não vem a público. A metade chega ao conhecimento das autoridades. Cinco por cento, 25 mil crianças, são mortas por pais e parentes próximos todos os anos. Como sempre, esqueceremos isso? Nesse tempo, só existe o que aparece na televisão.


Cada vez mais descobrimos que a causa de Jesus, antes abraçada por cristãos de confissão, vem sendo interessante a quem, tantas vezes, nada tem a ver com compromissos eclesiásticos, ou que leve institucionalmente o nome “cristão” na fachada. Ao contrário, ao considerar-se a atuação da sociedade organizada, em defesa dos “sem poder”, o que se observa mais freqüentemente é a apatia, o distanciamento, a indiferença das igrejas cristãs em relação às grandes lutas em favor das liberdades do homem e dos direitos sociais dos mais fracos.


Ao ler Tolstoi, Gandhi descobriu a estratégia da não-violência no Sermão do Monte de Jesus, assim como o pastor Luther King, que se inspirou nos baluartes da fé comprometida. Não podemos esquecer Jaime Wright, pastor presbiteriano ecumênico, e o projeto “Brasil: Nunca Mais”, na parceria imprescindível de Dom Paulo Evaristo Arns. De fato, cristãos como Jaime têm muito a dizer sobre isso. Mesmo depois de mortos. Por decisão do juiz Gustavo S. Teodoro, em primeira instância, o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra tornou-se o primeiro oficial condenado na justiça brasileira em uma ação declaratória por seqüestro e tortura durante o regime militar (1964-1985). Na decisão, o juiz afirmou que o DOI-CODI era “uma casa dos horrores”. As testemunhas que estiveram presas ali disseram que Ustra comandava as sessões de tortura com espancamento, choques elétricos e tortura psicológica. O presbítero Paulo Wright teria sido morto assim. Das celas podia-se ouvir gritos, gemidos e choros dos presos. Ficou caracterizada pelo menos a culpa, por omissão, quanto à grave violação dos direitos humanos fundamentais, afirmou o magistrado na sentença.

Fonte: Ultimato

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